sábado, 7 de novembro de 2015

Petisco de Alheira com Polpa de Berinjela Defumada




Perfumes são sempre reveladores e exalam memórias. Gosto do modo como Clarice Lispector entende a arte de perfumar-se: "Vou tomar um banho antes de sair e perfumar-me com um perfume que é segredo meu. Só digo uma coisa dele: é agreste e um pouco áspero, com doçura escondida".


"Eu me perfumo para intensificar o que sou. Por isso não posso usar perfumes que me contrariem. Perfumar-se é uma sabedoria instintiva. E, como toda arte, exige algum conhecimento de si própria. Uso um perfume cujo nome não digo: é meu, sou eu. Duas amigas já me perguntaram o nome, eu disse, elas compraram. E deram-me de volta: simplesmente não era delas. Não digo o nome também por segredo: é bom perfumar-se em segredo".


Agora, mudando um pouco o tema (que não é sobre perfumes e sim sobre a arte de perfumar-se), este escrito de Clarice é um dos meus preferidos: "Têm escritores que só se põem a escrever quando têm o livro na cabeça. Eu não. Vou me seguindo e não sei no que vai dar. Depois vou descobrindo o que eu queria". 

Gosto imensamente desta forma livre, desapegada, sem regras e sem medos, principalmente sem medos de se revelar, que Clarice escolhia sentir o viver. Caminhava sempre ao lado das descobertas, como uma observadora de si mesma. Acho isso tão espetacular nela! 

Digo principalmente sem medos, pois creio que pode faltar por vezes coragem para sermos observadores de nós mesmos! Algumas revelações podem não ser bem-vindas. Então tenho que dizer: brava Clarice, bravíssima! 


Pois é, agora vou dar um salto da Clarice para as alheiras, que sempre marcaram presença na casa dos meus pais. Minha mãe adorava e meu pai diante de uma oportunidade, sempre aparecia em casa com duas alheiras embrulhadas em fino papel pardo, aquele mesmo das antigas mercearias. 

As mercearias antigas, alguns chamavam de venda, não existem mais, talvez ainda uma aqui outra ali, mas jamais como as que existiram no passado. Os balcões e prateleiras eram de madeira escura e com vitrine, para demonstrar os doces, os cereais, os pães.

Naquela época, não existia cartão de crédito, ele era feito em forma de caderneta. Toda a compra do mês era anotada na caderneta e meu pai pagava no dia cinco do mês seguinte. 

A mercearia ficava na mesma rua que eu morava, só que do outro lado, um pouco mais pra cima, no mesmo quarteirão. E minha mãe, começando a me soltar um pouco, dizia que eu já tinha autorização para comprar o pão sozinha. Mas como assim? Eu pensei então: será que já posso atravessar a rua sozinha? Sim, foi a resposta da minha mãe, mas com ela do meu lado indicando em que momento eu poderia atravessar a rua. E o sinal era o instante em que a mão dela se soltava da minha, assim com se fosse um impulso no ar, como faz a mamãe águia empurrando os filhotes para fora do ninho, para assim aprenderem a voar. 

Era 1969, eu tinha seis anos e já estava matriculada na escola, no antigo Jardim da Infância: 


Tendo eu atravessado a rua sozinha, então seguia até a mercearia para comprar o pão. Eu levava comigo a caderneta para que fosse anotado o valor da compra. Na volta, chegando a altura da minha casa, eu chamava pela minha mãe e ela indicava novamente o momento que eu poderia atravessar a rua e entrar em casa em perfeita segurança. E assim, com a mesa já pronta, o lanche da tarde acontecia.

E tem mais, naquela época a gente chamava o pão de bengala, não me lembro do pão francês. Comprava-se uma bengala, que era um pão comprido que a gente cortava em fatias para comer com manteiga.   

Havia de tudo ou mais em uma mercearia antiga, mas o meu paraíso estava sempre em cima do balcão: o baleiro! Quem lembra dos baleiros antigos, aqueles de três andares?

Então, o tio da mercearia girava o baleiro e parava aonde eu pedia, abria a tampa e eu colocava a mão dentro e pegava uma bala, sendo a minha preferida a de sabor hortelã. Era um momento mágico que não dá para esquecer! Tudo era feito com calma, devagar, o tempo não passava, os dias eram longos e cada instante era um encanto. 

Ainda vamos entender que algumas formas de viver do passado, especialmente as tradições, precisam ser mantidas, mesmo com um mundo tão tecnológico e em transformação diária. Um mundo um pouco desencantado, com novidades exageradas, porém oco, aonde as pessoas não tem mais tempo para pequenos prazeres.

Voltando a falar das alheiras, penso que aprendi a gostar delas por influência da minha mãe. Gosto do sabor e do perfume, acho ideal para um petisco, mas também como prato principal juntamente com um ovo frito, espinafre refogado e algumas batatas salteadas no azeite com salsinha. Um prato excelente e muito saboroso! 

Todos sabem o que é alheira? É uma iguaria divina da culinária portuguesa! Clique aqui e veja este vídeo sobre a Alheira de Mirandela, que dizem se a melhor. 

Imagem do google

Outro dia eu olhava para uma alheira e pensava em fazer com ela algo diferente. Ao pesquisar no google, encontrei algumas receitas de bolinhas de alheira e eu achei que deveria juntar ao preparado algum legume. A esta altura, eu já pensava na berinjela, que eu acho muito versátil, mas ainda insistindo em inovar, me veio a cabeça a ideia de defumar a berinjela, como os libaneses fazem para a receita do Babaganush. 

1 alheira 
1 berinjela pequena 
1 gema
1 cebola pequena ralada
2 colheres de sopa de folhas de salsinha picadas
pimenta preta  
farinha de rosca, de preferência caseira ou de padaria, para dar o ponto
sal, se necessário
óleo de semente de girassol para fritar


Defume a berinjela na boca do fogão, retire a casca e reserve. Se ficar alguns pontinhos pretos da casca, não se preocupe, eles darão um sabor defumado delicioso. Veja neste vídeo como é fácil este procedimento. Gire a berinjela para defumar de todos os lados com a ajuda de um pegador. 

Passe a ponta da faca pela alheira e retire toda a pele. Desfaça a alheira em pedaços e em uma tigela, amasse bem com um garfo. Junte a berinjela e amasse também com o garfo, unindo bem a alheira com a berinjela. 


Junte agora a gema, a cebola ralada, a salsinha, rale pimenta preta e misture tudo. Junte farinha de rosca aos poucos, até dar o ponto de formar bolinhas com as mãos. Prove para ver a necessidade de sal, pois a alheira é salgada. 


Forme bolinhas com a massa da alheira, como se fossem polpette. Não faça muito grande, melhor assim para fritar. 


Aqueça o óleo em uma frigideira, passe as bolinhas em farinha de rosca. Eu não passo na clara de ovo e nem na farinha de trigo, prefiro só na farinha de rosca. Frite em óleo quente, virando as bolinhas, para fritarem dos dois lados. Escorra em papel absorvente e depois arrume em um prato de servir.


Foi o prato principal, acompanhadas de uma Salada de Feijão
Se você gosta de coentro, junte a esta salada e não vai ter do que se arrepender!



Eu fui fortemente inspirada pela Neuza do 'saborintenso', é uma receita sem berinjela.




6 comentários:

  1. Dos perfumes da Clarice, às tuas histórias de vida , tudo lindo!Adorei a foto na escola! E adorei saber das alheiras, que não conhecia com esse nome! Tua receita? Perfeita! Adorei a ideia e a alquimia! Valeu! Linda semana! bjs, chica

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    1. Muito obrigado pela presença constante, pelo carinho, sinta-se abraça Chica;
      Também gosto muito desta foto,
      Que sua semana seja linda e feliz, beijo s2

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  2. Pois é, Maria da Glória! Tivesse eu o teu poder de síntese, e estava o "problema" resolvido, mas cada qual é como é, e o teu post não merece um "Amei" ou "Que delícia!".

    Vou dizer-te aquilo que encontro por aí apos molhos: "identifico-me tanto com o que tu (você) escreveste", mas para além disso, que é total e absolutamente verdade em mim, a tua primorosa escrita, nos aspetos morfológicos e sintáticos, tal como a ideia de enriqueceres o texto falando não só de culinária, de receitas, mas, neste caso, de perfumes, mercearias antigas, do primor, do zelo que só amor de mãe tem, proporcionou-me um duplo ou triplo prazer.
    As imagens foram colírio para os meus olhos.

    Começando por Clarice, que não era brasileira, inicialmente, eu sou tal e qual como ela era, em muitos aspetos. Se pensarmos no perfume, ele tem de ser "concebido" só pra mim, caso não, fico atordoada e incomodada. Há um mês, mais ou menos, comprei um de chá branco, na sua essência, que coloco assim como "en passant", e quase não se dá por mim, nem por ele. É meu, é meu. Percebes, Maria da Glória? Posse e pertença são coisas diferentes, mas neste caso, eu reúno e assumo as duas, "ferozmente".
    No que se refere à escrita, pois eu e Clarice somos iguais, pke eu nunca sei onde começa ou termina, ou como vai terminar um poema ou um texto meu. Vivo o momento e deixo fluir os afetos e sentires.
    Ai, teus corações, os do cursor, embrulham e alegram minhas palavras!

    Em relação às antigas mercearias, tenho de acrescentar a tudo isto, que os meus pais e logo após o casamento deles, o meu avô paterno lhes deu como presente de casamento uma mercearia dessas e um café, mesmo ao lado. Portanto, minha querida, nasci e vivi nesse ambiente alguns anos e sei k meus pais tinham um livrão bem retangular, de capa e contracapa negras e com fiozinho até para separar os clientes mais devedores. E lembro-me das boleiras, sim, embora em Portugal jugo terem outro nome. Nossa mão lá, era como a entrada no Paraíso!

    Eu, tal como tu, tb ia comprar o pão na padaria k ficava do outro lado da rua, era só atravessar, mas só fiz esse "exercício", qdo tinha uns oito anos e já vivendo em Lisboa, mas que medo, que voo, que "loucura". Ah! E como meu coração se prendia e se soltava!

    Qto a alheiras não sou grande apreciadora, mas com estas variantes que lhe acrescentaste, talvez o sabor delas fique dissipado. Conheço mto bem e já comi, obviamente, alheiras de Mirandela. Teve de ser, pke "em Roma, sê romano"!

    Gosto de comida árabe, em geral, mas sem picantes, e eles usam e abusam deles. Adoro cuscuz e tajine de qualquer coisa, embora a de carne de borrego esteja no top da lista.

    Dias bem felizes.

    Beijos e carinhoso abraço.

    PS: no final de semana, espero escrever e publicar alguma coisa nova, mas não faço a mínima, te juro!

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    1. Olá Céu, delícia ler o que escreveste. Obrigado!

      Já vi que além dos belos poemas, ainda é contadora de histórias, o que eu adoro! Começe a me contar uma, como a da mercearia dos teus pais, que eu peço um café e fico ao teu lado em silêncio só para te ouvir e sentir.

      Clarice é sempre uma descoberta, gosto demais da escrita, do pensar, do olhar. E sobre a arte de perfumar-se, Clarice me arrebatou! Foi perfeita! Sim Céu, percebo a união de posse e pertença.
      E ainda, não saber onde começa ou onde termina, tal como você, Clarice e eu, é uma dádiva. Um modo particular de sermos livres.

      Fiquei aqui imaginando o livro retangular dos teus pais, outros tempos ...

      Tajine eu adoro e sou apreciadora de comida árabe, libanesa, turca. Os doces também me agradam.

      Veremos então o que há de nascer para o final de semana e dias igualmente felizes para você, junto com um beijinho do outro lado do Atlântico.

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  3. Um post, absolutamente adorável... da primeira à última palavra, Gloria...
    Estou adorando, todo o conteúdo, que cada uma das suas receitas, nos vais proporcionando em vários aspectos, literários, pessoais, culinários...
    Um excelente post, para degustar e apreciar com calma, por aqui... e com todos os ingredientes, no ponto!...
    Adorei tudo!!!! Beijinhos!
    Ana

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    1. Suas palavras me encantam, motivam e emocionam querida Ana.
      Você bem percebes o quanto de alma tem na minha cozinha, que exala pelas panelas, muitas memórias.
      Quam sabe um dia sentaremos juntas para um café? Quem sabe!
      Beijinho amore mio.

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